A fome em Gaza é uma tragédia anunciada.
Em 2021, Israel foi um dos dois únicos países entre todos os membros da ONU que votaram contra uma resolução que reafirmava o direito à alimentação como um direito humano fundamental — uma moção que foi aprovada com 186 votos a favor.
Os EUA foram o único país a apoiar Israel na oposição ao acesso à alimentação como um «direito fundamental de todos a não passar fome».
Quatro anos depois, essa votação vergonhosa na Assembleia Geral da ONU levou ao bloqueio de ajuda humanitária de 11 semanas por parte de Israel em Gaza, transformando o território ocupado no “lugar mais faminto da Terra”, com toda a sua população a passar pelo risco de fome.
“Os palestinianos em Gaza têm direito à alimentação e à segurança. (Os EUA e Israel) estão a ignorar o direito internacional. O verdadeiro desafio é que não existe um mecanismo aplicável contra os EUA ou Israel”, diz Antony Loewenstein, jornalista de investigação e autor do livro The Palestine Laboratory: How Israel Exports the Technology of Occupation Around the World (O Laboratório da Palestina: Como Israel exporta a tecnologia da ocupação para todo o mundo), à TRT World.
Milhares de crianças enfrentam fome aguda em Gaza devastada pela guerra, já que Israel proibiu por quase três meses que todos os alimentos e medicamentos chegassem aos 2,3 milhões de palestinianos que enfrentam bombardeamentos ininterruptos há 20 meses.
Telavive agora permite que apenas um pequeno número de camiões de ajuda humanitária entre no território, pois o Primeiro-ministro israelita Benjamin Netanyahu teme que os aliados internacionais retirem o apoio devido às “imagens de fome”. O volume de ajuda que chega a Gaza é tão pequeno que os funcionários da ONU o descreveram como “uma gota no oceano”.
Embora o Tribunal Penal Internacional, apoiado pela ONU, tenha emitido mandados de prisão contra Netanyahu e o ex-ministro da Defesa Yoav Gallant, nenhum país demonstrou disposição para realmente aplicá-los.
“Temos uma verdadeira crise no direito internacional neste momento. Mas não há ninguém para o aplicar. Não há nenhum mecanismo, nenhum órgão, nenhum país, nenhum exército capaz de fazer cumprir o direito internacional”, afirma Loewenstein.
A UNICEF informou recentemente que 71.000 crianças e mais de 17.000 mães em Gaza precisavam de tratamento urgente para desnutrição aguda. A agência das Nações Unidas para a infância estima que “dezenas de milhares” de casos de desnutrição são esperados no próximo ano, com Gaza à beira da fome.
Mais de 116.000 toneladas de ajuda alimentar, suficientes para um milhão de pessoas por até quatro meses, já estão posicionadas em corredores de ajuda, mas Israel não está a permitir que as agências de ajuda humanitária as levem para o território ocupado.
“O genocídio de Israel em Gaza consubstancia essencialmente crimes de guerra, após crimes de guerra, após crimes de guerra. Não há nenhum órgão internacional, país ou força disposta a impedi-lo”, diz Loewenstein.
Esquema mortal para a distribuição de ajuda
Israel está a usar a altamente controversa Fundação Humanitária de Gaza (GHF), uma instituição de caridade apoiada pelos EUA, para distribuir ajuda em Gaza de forma caótica e mortal.
No domingo, autoridades palestinianas e internacionais disseram que pelo menos 31 pessoas foram mortas e dezenas ficaram feridas perto de um dos quatro centros de distribuição de alimentos operados pela GHF.
Um vídeo filmado no local da GHF mostrou palestinianos a fugir de uma zona cercada, quando elementos contratados pelo GHF, armados com armas americanas, lançaram um projétil que explodiu com um estrondo alto, um clarão e fumo.
Apelando a uma investigação independente, o Secretário-geral da ONU, António Guterres, disse estar chocado com as notícias de palestinianos mortos e feridos «enquanto procuravam ajuda» em Gaza.
O plano de ajuda da GHF, que contorna os grupos de ajuda tradicionais, tem sido alvo de críticas ferozes da ONU e de organizações humanitárias, que afirmam que a ONG apoiada pelos EUA e endossada por Israel “não segue os princípios humanitários”.
De acordo com o Diretor de emergências da OMS, Michael Ryan, toda a população de Gaza está “em perigo iminente de morte”. “Precisamos acabar com a fome, precisamos libertar todos os reféns e precisamos reabastecer e colocar o sistema de saúde novamente em funcionamento.”
A fome como método de combate
A resolução da ONU, adotada apesar da oposição dos EUA e de Israel, reafirmou que «a fome dos civis como método de combate» é proibida pelo direito internacional humanitário.
«É, portanto, proibido atacar, destruir, remover ou inutilizar... objetos indispensáveis à sobrevivência da população civil, tais como alimentos... colheitas, gado, instalações e abastecimento de água potável e obras de irrigação», afirma a resolução.
Israel tem prejudicado gravemente a capacidade dos residentes do território ocupado de produzirem os seus próprios alimentos. A ONU afirma que 82% das terras agrícolas em Gaza foram danificadas, deixando campos outrora produtivos estéreis. Quase 70% dos poços agrícolas foram danificados, enquanto 96% do gado e 99% das aves morreram.
A resolução da ONU também reafirmou que a fome constitui «uma indignação e uma violação da dignidade humana», exigindo medidas urgentes a nível nacional, regional e internacional para a sua eliminação.
Mas os EUA opuseram-se à resolução, argumentando que ela continha «disposições desequilibradas, imprecisas e imprudentes». Os EUA não reconheceram o direito à alimentação como legalmente aplicável ao abrigo do direito internacional, afirmaram.
«Os EUA estão preocupados que o conceito de “soberania alimentar” possa justificar o protecionismo ou outras políticas restritivas de importação ou exportação.»