CULTURA
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O declínio da imagem dos muçulmanos no cinema Bollywood: uma análise histórica
Depois da Partição da Índia, o cinema indiano costumava retratar os muçulmanos como leais e bons, mas a ascensão do nacionalismo hindu ajudou a normalizar estereótipos muito menos amigáveis, explica um especialista em cultura.
O declínio da imagem dos muçulmanos no cinema Bollywood: uma análise histórica
O ator Bobby Deol interpreta o vilão muçulmano misógino Abrar Haque no filme indiano de grande sucesso Animal (dezembro de 2023). / AFP
22 de janeiro de 2025

Corria o ano de 1959, e o aclamado Diretor Yash Chopra estava ainda a iniciar a sua carreira. Na sua estreia como diretor cinematográfico no filme Dhool Ka Phool (Flor da Poeira), pode ouvir-se a letra de uma canção clássica : "Tu Hindu banega na Musalman banega, insaan ka aulad hai insaan banega" - Tu não crescerás como hindu ou muçulmano; tu crescerás como um ser humano.

Chopra não se prendeu na religião na Flor da Poeira, mas encontrou uma cura existencial no facto de ser um ser humano, o que foi bem recebido pelo seu público. A canção ecoava um sentimento crescente na Índia pós-Partição, após um evento histórico cheio de perdas e baseado na divisão religiosa.

O enredo do filme gira em torno de um homem muçulmano chamado Abdul Rashid, que adotou uma criança hindu abandonada. O que estabeleceu uma narrativa no cinema do "bom muçulmano", retratando-os como patriotas leais e cidadãos bem-intencionados.

A representação de Abdul Rashid como um homem muçulmano humano e carinhoso era um reflexo de uma comunidade muçulmana visivelmente próspera na Índia na época. A sua presença ressoava com a ética de uma nação recém-fundada: secular, democrática e plural, enquanto sinergicamente florescia uma atmosfera criativa que produzia grandes obras de literatura, poesia e muitos filmes sociais como Anarkali (1953), Chaudavi Ki Chand (1960), Mughal –e-Azam (1960) e Pakeezah (1972), todos os quais retratavam muçulmanos como essencialmente boas pessoas.

Na década de 1970, o conceito dos muçulmanos como sendo "bons seres humanos" era integral à narrativa cinematográfica espontânea, como retratado em Amar Akbar Anthony (1977), um sucesso de bilheteira dirigido por Manmohan Desai sobre três irmãos que foram separados na infância. Desai celebrou o pluralismo ao mostrar os irmãos adotados por famílias que seguiam três fés – hinduísmo, islamismo e cristianismo, unindo o trio no final.

Mas o cinema indiano mudou muito desde os anos 70.

Em duas décadas, as representações amistosas dos muçulmanos começaram a desaparecer. Surgiram novos enredos carregados de sentimentos anti-muçulmanos. Os novos guiões não se importavam com os Abdul Rashids ou Akbars, em vez disso, criavam Abrar Haques (Animal 2023) através de uma jornada complexa enraizada na realidade política e social da Índia.

Um ponto de viragem foi a demolição da Mesquita Babri em 1992, uma mesquita do século XVI em Ayodhya (o suposto local de nascimento do Deus Hindu, Rama).

O ato inconsciente perpetrado por apoiantes do Hindutva, para além de impulsionar tumultos comunitários e devastações, também deu lugar à ascensão da política hindu de extrema direita em todo o país. Essencialmente, este momento marcou o começo da marginalização e desumanização formal dos muçulmanos na Índia.

Após o incidente da Mesquita Babri, o sentimento anti-muçulmano foi transferido para o cinema com filmes como Roja (1992), a história de uma mulher tâmil com o mesmo nome, que procura o seu marido (um oficial da agência de inteligência indiana), que foi sequestrado por rebeldes muçulmanos da Caxemira.

Roja criou com sucesso e subtilmente novos conceitos cinematográficos conotando os muçulmanos como um símbolo de todas as coisas negativas e demoníacas. O que começou com Roja ganhou impulso, e os muçulmanos em pouco tempo foram considerados "antipatriotas" respaldados por uma agenda oculta, comprovada ou não, ou como apoiantes do Paquistão. Os homens muçulmanos eram frequentemente retratados como "agressores das esposas" e "homens hipersexuais” com um apetite infinito por carne.

A próxima década teve uma longa lista de filmes, como Sarfarosh (1999), LOC: Kargil (2003) Veer-Zara (2004), Fanaa (2006) Kurbaan (2009), e New York (2009), que caíram na estereotipagem dos muçulmanos, até que essas ideias foram normalizadas nos filmes de Bollywood.

Avançando para 2014, quando as eleições gerais da Índia foram historicamente vencidas pelo Partido Bharatiya Janata (BJP), partido nacionalista hindu. A partir daqui os filmes alimentaram a islamofobia e a superioridade hindu ao produzir dramas históricos como Padmavat (2018) e Tanhaji (2020), que incluíam personagens do passado islâmico da Índia.

Com séculos de diferença, estes filmes retrataram os governantes muçulmanos como grotescos, hipersexuais e mórbidos, invocando a ficção em nome da história.

À medida que o regime político se foi consolidando nos anos seguintes, os filmes tornaram-se profundamente propagandistas. Nos últimos dois anos, filmes como The Kashmir Files (2022), que retratou o êxodo dos hindus da antiga Caxemira, e The Kerala Story (2023), que se centrou em torno das mulheres traficadas para servir no Daesh, foram fortemente promovidos pelo atual regime do Hindutva. Os bilhetes para os filmes foram até declarados isentos de impostos nos estados governados pelo BJP para atrair mais público.

De facto, no clima político existente, a islamofobia desenfreada no cinema hindi só adicionou lenha à fogueira. Para os espectadores, solidifica as percepções dos homens muçulmanos como sendo devoradores de carne maníacos e hipersexuais. Enquanto isso, os filmes retratam as mulheres muçulmanas como objetos sexuais que não têm autonomia sobre seus corpos, como em Padmavat e Animal.

Estas perceções anti-muçulmanas estão a fomentar a intolerância entre a maioria da população, como se pode ver em vários casos de assédio online e discriminação social.

É possível manter alguma esperança de que, apesar de tal polarização, talvez os cineastas decidam trazer de volta Akbar, o charmoso de Amar Akbar Anthony, interrompendo o caminho da islamofobia, mesmo que por agora seja uma possibilidade distante.

 

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